Postagens

Mostrando postagens de 2015

Epilogo - António Nobre.

Epilogo Meu coração, não batas, pára!  Meu coração, vae-te deitar!  A nossa dor, bem sei, é amara,  A nossa dor, bem sei, é amara...  Meu coração, vamos sonhar...  Ao mundo vim, mas enganado.  Sinto-me farto de viver:  Vi o que elle era, estou massado,  Vi o que elle era, estou massado...  Não batas mais! vamos morrer...  Bati á porta da Ventura  Ninguem m'à abriu, bati em vão:  Vamos a ver se a sepultura,  Vamos a ver se a sepultura  Nos faz o mesmo, coração!  Adeus, Planeta! adeus, ó Lama!  Que a ambos nós vaes digerir...  Meu coração, a Velha chama,  Meu coração, a Velha chama...  Basta, por Deus! vamos dormir...  António Nobre.

O teu riso - Pablo Neruda.

O teu riso Tira-me o pão, se quiseres, tira-me o ar, mas não me tires o teu riso. Não me tires a rosa, a lança que desfolhas, a água que de súbito brota da tua alegria, a repentina onda de prata que em ti nasce. A minha luta é dura e regresso com os olhos cansados às vezes por ver que a terra não muda, mas ao entrar teu riso sobe ao céu a procurar-me e abre-me todas as portas da vida. Meu amor, nos momentos mais escuros solta o teu riso e se de súbito vires que o meu sangue mancha as pedras da rua, ri, porque o teu riso será para as minhas mãos como uma espada fresca. À beira do mar, no outono, teu riso deve erguer sua cascata de espuma, e na primavera, amor, quero teu riso como a flor que esperava, a flor azul, a rosa da minha pátria sonora. Ri-te da noite, do dia, da lua, ri-te das ruas tortas da ilha, ri-te deste grosseiro rapaz que te ama, mas quando abro os olhos e os fecho, quando

Ternura - David Mourão Ferreira.

Ternura Desvio dos teus ombros o lençol,  que é feito de ternura amarrotada,  da frescura que vem depois do sol,  quando depois do sol não vem mais nada...  Olho a roupa no chão: que tempestade!  Há restos de ternura pelo meio,  como vultos perdidos na cidade  onde uma tempestade sobreveio...  Começas a vestir-te, lentamente,  e é ternura também que vou vestindo,  para enfrentar lá fora aquela gente  que da nossa ternura anda sorrindo...  Mas ninguém sonha a pressa com que nós  a despimos assim que estamos sós!  David Mourão Ferreira.

Pensar em ti é coisa delicada - Antonio Gedeão.

Pensar em ti é coisa delicada.  É um diluir de tinta espessa e farta  e o passá-la em finíssima aguada  com um pincel de marta.  Um pesar grãos de nada em mínima balança,  um armar de arames cauteloso e atento,  um proteger a chama contra o vento,  pentear cabelinhos de criança.  Um desembaraçar de linhas de costura,  um correr sobre lã que ninguém saiba e oiça,  um planar de gaivota como um lábio a sorrir.  Penso em ti com tamanha ternura  como se fosses vidro ou película de loiça  que apenas com o pensar te pudesses partir.  Antonio Gedeão.

Poema de um Amor Divinizante - Professor Hermógenes.

Poema de um Amor Divinizante Somos um, embora dois. Assim como a flor e o perfume são, em essência, eles mesmos, a mesma coisa.  Numa única essência cristalina nos fundimos e me sinto sem forma, indefinidamente vivendo o Abstrato que traz em si o Substrato...do Imperecível, do Imortal, do Eterno, do Absoluto.  A divindade desse Amor que nos une também é sem forma, tal como Deus.  Assim, me sinto vivendo em Deus, sendo Deus, amando Deus.  Deus em mim é Deus em você !  Somos Deuses !!!  Eu O encontrei em você!  Que delícia !  Eu encontrei você!  Professor Hermógenes.

Silogismos da amargura - Cioran.

Suficientemente ingênuo para colocar-me em busca da Verdade, interessei-me no passado — inutilmente — por muitas disciplinas. Começava a firmar-me no ceticismo quando tive a idéia de consultar, como último recurso, a Poesia: quem sabe, disse a mim mesmo, talvez me seja útil, talvez esconda sob sua arbitrariedade alguma revelação definitiva. Recurso ilusório: ela me fez perder até minhas incertezas… Cioran, In: Silogismos da amargura.

Escrever é como soprar um machucado ardido.

Escrever é como soprar um machucado ardido. Você sabe que ele está ali, más já dá para seguir em frente.

Esquece o futuro - Montaigne.

“Esquece o futuro… ele não te pertence! O presente te basta! Mas é preciso ser rápido, quando ele é mau presente E andar devagar quando se trata de saboreá-lo Expressões como: “passar o tempo” espelham bem a maneira de viver dessa gente prudente…. que imagina não haver coisa melhor pra fazer da vida. Deixam passar o presente, esquivam-se, ignoram o presente… Como se estar vivo fosse uma coisa desprezível… Porque a natureza nos deu a vida em condições tão favoráveis… que só mesmo por nossa culpa ela poderia se tornar pesada e inútil”. Montaigne.

Morreste-me - José Luís Peixoto.

Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer, em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai. Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei. José Luís Peixoto.

Os Sete Enforcados - Leônidas Andreiev.

Se nas coisas cruéis pode haver nobreza, havia nobreza, certamente, naquele silêncio profundo e solene em que todo sopro se desvanecia.  Naquele austero silêncio, atravessado pela desolada vibração das horas que passavam, homens e mulheres separados do mundo, esperavam a noite, a manhã e o suplício, e cada um daqueles seres se preparava para a morte, a seu modo. Leônidas Andreiev.

Na hora de pôr a mesa, éramos cinco - José Luís Peixoto.

Na hora de pôr a mesa, éramos cinco... na hora de pôr a mesa, éramos cinco: o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. depois, a minha irmã mais velha  casou-se. depois, a minha irmã mais nova  casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,  na hora de pôr a mesa, somos cinco,  menos a minha irmã mais velha que está  na casa dela, menos a minha irmã mais  nova que está na casa dela, menos o meu  pai, menos a minha mãe viúva. cada um  deles é um lugar vazio nesta mesa onde  como sozinho. mas irão estar sempre aqui.  na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.  enquanto um de nós estiver vivo, seremos  sempre cinco.  José Luís Peixoto.

É preciso estar sempre ébrio. De vinho, de poesia ou de virtude - Charles Baudelaire.

"É preciso estar sempre ébrio. É tudo: eis a única questão. Para não sentir o terrível fardo do tempo que vos abate e vos inclina para a terra, tendes de embriagar-vos sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha. Mas embriagai-vos. E se porventura, nas escadas do palácio, na relva verde de uma vala, na solidão morna do vosso quarto, despertardes a embriaguez já atenuada ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo o que se esvai, a tudo o que geme, a tudo o que passa, a tudo o que canta, a tudo o que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio responder-vos-ão: está na hora de se embriagarem! Para que não se tornem escravos martirizados do tempo, embriagai-vos. Embriagai-vos incessantemente! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa escolha." Charles Baudelaire.

Primeiro amor - Ivan Turguêniev.

Ah juventude! Juventude! Você parece não ligar para nada, parece possuir todos os tesouros do universo, até a tristeza lhe traz contentamento, até o desgosto lhe cai bem, você é confiante e ousada, você diz: Só eu vivo – cuidado! Mas também para você os dias correm e somem, sem conta e sem deixar vestígio, e tudo em você desaparece, como a cera sob o sol, como a neve... E talvez todo o segredo de seu encanto consista não na possibilidade de pensar que você fará tudo – consista justamente em que você solte aos ventos forças que não saberia empregar de outro modo –consista em que cada um de nós se considere a sério um perdulário, e acredite a sério que tem o direito de dizer: "Ah, quanta coisa eu faria se não tivesse desperdiçado meu tempo!". (...) Quantas esperanças eu tinha (...) Mas, de tudo aquilo que eu esperava, o que se realizou? E agora, quando em minha vida já começam a baixar as sombras do entardecer, o que me restou de mais fresco, de mais caro, do que as lemb

O canteiro de mármore - Hermann Hesse.

A primeira estrela não tardaria a surgir em prenúncio de noite próxima. A conversa com Becker dera um pontapé em meu orgulho de pensador perspicaz. E como fazia uma noite muito bonita e já havia um vazio no meu amor-próprio, apossou-se repentinamente de mim uma paixão pela filha do marmorista. O que senti naquele instante fez-me concluir que não se podia brincar com paixões. Comi as últimas cerejas que ainda tinha comigo e quando as estrelas já tinham saído, quando na rua se ouviam os descantes, na voz de algumas moças sentimentais, larguei o chapéu e minha sabedoria no banco e encaminhei-me, apressado, para os campos escurecidos. Preso de uma incrível emoção, abrandei o passo e deixei correr as lágrimas livremente. Mas, através da névoa que embaciava meus olhos, entrevia os espaços abertos que a noite estival preenchera de sombras quietas, as terras lavradas desdobravam-se até aos horizontes como uma sucessão de ondas suaves desfazendo-se na muralha transparente do céu; de um l

A beleza de toda a literatura - F. Scott Fitzgerald.

Isso é parte da beleza de toda a literatura. Você descobre que os seus anseios são os mesmos de todos, que você não está sozinho e isolado de ninguém. Você pertence. F. Scott Fitzgerald.

O Desinteressante Das Desimportâncias - André Anacoreta.

"O sentimento da poesia é um sentimento de espanto, de assombro diante das contradições inerentes à vida. O poeta no seu ato de poetizar, seja lá o que for, é como um gato que fica a espreita observando de longe. Os olhos de um poeta são olhos vibrantes, alucinados; estão sempre atentos aguardando uma mensagem visual, um momento de prender o presente e transformá-lo em arte." André Anacoreta in O Desinteressante Das Desimportâncias.

Sou homem: duro pouco - Octavio Paz.

Sou homem: duro pouco e é enorme a noite. Mas olho para cima: as estrelas escrevem.  Sem entender compreendo:  Também sou escritura  e neste mesmo instante  alguém me soletra.  Octavio Paz.

A finitude passeia entre nós - Padre Fabio de Melo.

"A finitude passeia entre nós. Ceifa-nos em pequenas medidas, leva-nos pelas mãos.  Viver é isso.  Despedida sem alardes."  Padre Fabio de Melo.

Prefácio - Manoel de Barros.

Prefácio Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) — sem nome.  Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.  Insetos errados de cor caíam no mar.  A voz se estendeu na direção da boca.  Caranguejos apertavam mangues.  Vendo que havia na terra  Dependimentos demais  E tarefas muitas —  Os homens começaram a roer unhas.  Ficou certo pois não  Que as moscas iriam iluminar  O silêncio das coisas anônimas.  Porém, vendo o Homem  Que as moscas não davam conta de iluminar o  Silêncio das coisas anônimas —  Passaram essa tarefa para os poetas.  Manoel de Barros.

Tratado geral das grandezas do ínfimo - Manoel de Barros.

Tratado geral das grandezas do ínfimo A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades.  Não tenho conexões com a realidade.  Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.  Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).  Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.  Fiquei emocionado.  Sou fraco para elogios.  Manoel de Barros.

A Borra - Manoel de Barros.

A Borra Prefiro as palavras obscuras que moram nos fundos de uma cozinha - tipo borra, latas, cisco Do que as palavras que moram nos sodalícios -  tipo excelência, conspícuo, majestade.  Também meus alter egos são todos borra,  ciscos, pobres-diabos  Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha  - tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego  Preto etc.  Todos bêbedos ou bicós.  E todos condizentes com andrajos.  Um dia alguém me sugeriu que adotasse um  alter ego respeitável - tipo um príncipe, um  almirante, um senador.  Eu perguntei:  Mas quem ficará com meus abismos se os  pobres diabos não ficarem?  Manoel de Barros.

Os deslimites da palavra - Manoel de Barros.

Os deslimites da palavra Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades.  Não posso mais saber quando amanheço ontem.  Está rengo de mim o amanhecer.  Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.  Atrás do ocaso fervem os insetos.  Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu  destino.  Essas coisas me mudam para cisco.  A minha independência tem algemas.  Manoel de Barros.

O livro sobre nada - Manoel de Barros.

O livro sobre nada É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta. Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário. Sou muito preparado de conflitos. Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. O meu amanhecer vai ser de noite. Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção. O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. Meu avesso é mais visível do que um poste. Sábio é o que adivinha. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. A inércia é meu ato principal. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. Peixe não tem honras nem horizontes. Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar n

Retrato do artista quando coisa - Manoel de Barros.

Retrato do artista quando coisa A maior riqueza  do homem  é sua incompletude.  Nesse ponto  sou abastado.  Palavras que me aceitam  como sou  — eu não aceito.  Não aguento ser apenas  um sujeito que abre  portas, que puxa  válvulas, que olha o  relógio, que compra pão  às 6 da tarde, que vai  lá fora, que aponta lápis,  que vê a rua etc. etc.  Perdoai. Mas eu  preciso ser Outros.  Eu penso  renovar o homem  usando borboletas.  Manoel de Barros.

Há quem receite a palavra ao ponto de osso - Manoel de Barros.

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;  ao ponto de ninguém e de nuvem.  Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na  sarjeta.  Sou mais a palavra ao ponto de entulho.  Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las  pro chão, corrompê-las  até que padeçam de mim e me sujem de branco.  Sonho exercer com elas o ofício de criado:  usá-las como quem usa brincos.  Manoel de Barros.

O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros.

O menino que carregava água na peneira Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.  A mãe disse que carregar água na peneira  era o mesmo que roubar um vento e  sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.  A mãe disse que era o mesmo  que catar espinhos na água.  O mesmo que criar peixes no bolso.  O menino era ligado em despropósitos.  Quis montar os alicerces  de uma casa sobre orvalhos.  A mãe reparou que o menino  gostava mais do vazio, do que do cheio.  Falava que vazios são maiores e até infinitos.  Com o tempo aquele menino  que era cismado e esquisito,  porque gostava de carregar água na peneira.  Com o tempo descobriu que  escrever seria o mesmo  que carregar água na peneira.  No escrever o menino viu  que era capaz de ser noviça,  monge ou mendigo ao mesmo tempo.  O menino aprendeu a usar as palavras.  Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. 

Auto-Retrato - Manoel de Barros.

Auto-Retrato Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora. Isso faz tempo.  Foi na beira de um rio.  Depois eu já morri 14 vezes.  Só falta a última.  Escrevi 14 livros.  E deles estou livrado.  São todos repetições do primeiro.  Posso fingir de outro, mas não posso fugir de mim.  Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.  Em pensamento e palavras namorei noventa moças,  mas pode que nove.  Produzi desobjectos, 35, mas pode que onze.  Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um  abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,  um prego que farfalha, um parafuso de veludo, etc. etc.  Tenho uma confissão: noventa por cento do que  escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.  Quero morrer no barranco de um rio: sem moscas  na boca descampada.  Manoel de Barros.

O apanhador de desperdícios - Manoel de Barros.

O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras  fatigadas de informar.  Dou mais respeito  às que vivem de barriga no chão  tipo água pedra sapo.  Entendo bem o sotaque das águas  Dou respeito às coisas desimportantes  e aos seres desimportantes.  Prezo insetos mais que aviões.  Prezo a velocidade  das tartarugas mais que a dos mísseis.  Tenho em mim um atraso de nascença.  Eu fui aparelhado  para gostar de passarinhos.  Tenho abundância de ser feliz por isso.  Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:  Amo os restos  como as boas moscas.  Queria que a minha voz tivesse um formato  de canto.  Porque eu não sou da informática:  eu sou da invencionática.  Só uso a palavra para compor meus silêncios. Manoel de Barros.

Nesta vida, pode-se aprender três coisas de uma criança - Paulo Leminski.

Nesta vida, pode-se aprender três coisas de uma criança; estar sempre alegre, nunca ficar inativo, e chorar com força por tudo que se quer. Paulo Leminski. 

Certezas o vento leva - Paulo Leminski.

Certezas o vento leva. Só dúvidas continuam de pé. Paulo Leminski.

Quando eu tiver setenta anos - Paulo Leminski.

Quando eu tiver setenta anos então vai acabar esta minha adolescência vou largar da vida louca e terminar minha livre docência  vou fazer o que meu pai quer  começar a vida com passo perfeito  vou fazer o que minha mãe deseja  aproveitar as oportunidades  de virar um pilar da sociedade  e terminar meu curso de direito  então ver tudo em sã consciência  quando acabar esta adolescência.  Paulo Leminski.

Os nossos olhos - Paulo Leminski.

Os nossos olhos Fazem amor, E nós ainda  Nem nos tocamos.  Paulo Leminski.

Hexagrama 65 - Paulo Leminski.

Hexagrama 65 Nenhuma dor pelo dano.  Todo dano é bendito.  Do ano mais maligno,  nasce o dia mais bonito.  1 dia,  1 mês,  1 ano.  Paulo Leminski.

Profissão de febre - Paulo Leminski.

Profissão de febre Quando chove, eu chovo,  faz sol,  eu faço,  de noite,  anoiteço,  tem deus,  eu rezo,  não tem,  esqueço,  chove de novo,  de novo, chovo,  assobio no vento,  daqui me vejo,  lá vou eu,  gesto no movimento  Paulo Leminski.

Meu verso, temo, vem do berço - Paulo Leminski.

Meu verso, temo, vem do berço. Não versejo porque eu quero, versejo quando converso e converso por conversar.  Pra que sirvo senão pra isto,  pra ser vinte e pra ser visto,  pra ser versa e pra ser vice,  pra ser a super-superfície,  onde o verbo vem ser mais?  Não sirvo pra observar.  Verso, persevero e conservo  um susto de quem se perde  no exato lugar onde está.  Onde estará meu verso?  Em algum lugar de um lugar,  onde o avesso do inverso  começa a ver e ficar.  Por mais prosas que eu perverta,  Não permita Deus que eu perca  meu jeito de versejar.  Paulo Leminski.

Despropósito geral - Paulo Leminski.

Despropósito geral Esse estranho hábito, escrever obras-primas, não me veio rápido.  Custou-me rimas.  Umas, paguei caro,  liras, vidas, preços máximos.  Umas, foi fácil.  Outras, nem falo.  Me lembro duma  que desfiz a socos.  Duas, em suma.  Bati mais um pouco.  Esse estranho abuso,  adquiri, faz séculos.  Aos outros, as músicas.  Eu, senhor, sou todo ecos.  Paulo Leminski.

Andar e pensar um pouco - Paulo Leminski.

Andar e pensar um pouco, que só sei pensar andando. Três passos, e minhas pernas já estão pensando. Aonde vão dar estes passos? Acima, abaixo? Além? ou acaso Se desfazem ao mínimo vento sem deixar nenhum traço? Paulo Leminski.

Desencontrários - Paulo Leminski.

Desencontrários Mandei a palavra rimar, ela não me obedeceu. Falou em mar, em céu, em rosa,  em grego, em silêncio, em prosa.  Parecia fora de si,  a sílaba silenciosa.  Mandei a frase sonhar,  e ela se foi num labirinto.  Fazer Poesia, eu sinto, apenas isso.  Dar ordens a um exército,  para conquistar um império extinto.  Paulo Leminski.

Ai daqueles... - Paulo Leminski.

Ai daqueles que se amaram sem nenhuma briga aqueles que deixaram que a mágoa nova virasse a chaga antiga Ai daqueles que se amaram sem saber que amar é pão feito em casa e que a pedra só não voa  porque não quer não porque não tem asa Paulo Leminski.

Razão de ser - Paulo Leminski.

Razão de ser Escrevo. E pronto. Escrevo porque preciso, preciso porque estou tonto.  Ninguém tem nada com isso.  Escrevo porque amanhece,  E as estrelas lá no céu  Lembram letras no papel,  Quando o poema me anoitece.  A aranha tece teias.  O peixe beija e morde o que vê.  Eu escrevo apenas.  Tem que ter por quê?  Paulo Leminski.

Invernáculo - Paulo Leminski.

Invernáculo Esta língua não é minha, qualquer um percebe.  Quem sabe maldigo mentiras,  vai ver que só minto verdades.  Assim me falo, eu, mínima,  quem sabe, eu sinto, mal sabe.  Esta não é minha língua.  A língua que eu falo trava  uma canção longínqua,  a voz, além, nem palavra.  O dialeto que se usa  à margem esquerda da frase,  eis a fala que me lusa,  eu, meio, eu dentro, eu, quase.  Paulo Leminski.

Sem título - Paulo Leminski.

Sem título Eu tão isósceles Você ângulo Hipóteses  Sobre o meu tesão  Teses sínteses  Antíteses  Vê bem onde pises  Pode ser meu coração  Paulo Leminski.

A lua no cinema - Paulo Leminski.

A lua foi ao cinema, passava um filme engraçado, a história de uma estrela  que não tinha namorado.  Não tinha porque era apenas  uma estrela bem pequena,  dessas que, quando apagam,  ninguém vai dizer, que pena!  Era uma estrela sozinha,  ninguém olhava pra ela,  e toda a luz que ela tinha  cabia numa janela.  A lua ficou tão triste  com aquela história de amor  que até hoje a lua insiste:  — Amanheça, por favor!  Paulo Leminski.

Adminimistério - Paulo Leminski.

Adminimistério Quando o mistério chegar, já vai me encontrar dormindo, metade dando pro sábado,  outra metade, domingo.  Não haja som nem silêncio,  quando o mistério aumentar.  Silêncio é coisa sem senso,  não cesso de observar.  Mistério, algo que, penso,  mais tempo, menos lugar.  Quando o mistério voltar,  meu sono esteja tão solto,  nem haja susto no mundo  que possa me sustentar.  Meia-noite, livro aberto.  Mariposas e mosquitos  pousam no texto incerto.  Seria o branco da folha,  luz que parece objeto?  Quem sabe o cheiro do preto,  que cai ali como um resto?  Ou seria que os insetos  descobriram parentesco  com as letras do alfabeto?  Paulo Leminski.

Amar você é coisa de minutos - Paulo Leminski.

Amar você é coisa de minutos A morte é menos que teu beijo  Tão bom ser teu que sou  Eu a teus pés derramado  Pouco resta do que fui  De ti depende ser bom ou ruim  Serei o que achares conveniente  Serei para ti mais que um cão  Uma sombra que te aquece  Um deus que não esquece  Um servo que não diz não  Morto teu pai serei teu irmão  Direi os versos que quiseres  Esquecerei todas as mulheres  Serei tanto e tudo e todos  Vais ter nojo de eu ser isso  E estarei a teu serviço  Enquanto durar meu corpo  Enquanto me correr nas veias  O rio vermelho que se inflama  Ao ver teu rosto feito tocha  Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha  Sim, eu estarei aqui  Paulo Leminski. 

Parada cardíaca - Paulo Leminski.

Parada cardíaca Essa minha secura essa falta de sentimento não tem ninguém que segure,  vem de dentro.  Vem da zona escura  donde vem o que sinto.  Sinto muito,  sentir é muito lento.  Paulo Leminski.

O que quer dizer - Paulo Leminski.

O que quer dizer diz.  Não fica fazendo  o que, um dia, eu sempre fiz.  Não fica só querendo, querendo,  coisa que eu nunca quis.  O que quer dizer, diz.  Só se dizendo num outro  o que, um dia, se disse,  um dia, vai ser feliz.  Paulo Leminski.

Dor elegante - Paulo Leminski.

Dor elegante Um homem com uma dor É muito mais elegante Caminha assim de lado  Com se chegando atrasado  Chegasse mais adiante  Carrega o peso da dor  Como se portasse medalhas  Uma coroa, um milhão de dólares  Ou coisa que os valha  Ópios, édens, analgésicos  Não me toquem nesse dor  Ela é tudo o que me sobra  Sofrer vai ser a minha última obra  Paulo Leminski.

Bem no fundo - Paulo Leminski.

No fundo, no fundo,  bem lá no fundo, a gente gostaria  de ver nossos problemas  resolvidos por decreto  a partir desta data,  aquela mágoa sem remédio  é considerada nula  e sobre ela — silêncio perpétuo  extinto por lei todo o remorso,  maldito seja quem olhar pra trás,  lá pra trás não há nada,  e nada mais  mas problemas não se resolvem,  problemas têm família grande,  e aos domingos  saem todos a passear  o problema, sua senhora  e outros pequenos probleminhas.  Paulo Leminski.

Voláteis - Paulo Leminski.

Voláteis Anos andando no mato, nunca vi um passarinho morto, como vi um passarinho nato.  Onde acabam esses voos?  Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?  São solúveis em água ou em vinho?  Quem sabe, uma doença dos olhos.  Ou serão eternos os passarinhos?  Paulo Leminski.

Um bom Poema - Paulo Leminski.

Um bom poema  leva anos cinco jogando bola, mais cinco estudando sânscrito, seis carregando pedra, nove namorando a vizinha, sete levando porrada, quatro andando sozinho, três mudando de cidade, dez trocando de assunto, uma eternidade eu e você, caminhando junto. Paulo Leminski.

Objeto do meu mais desesperado desejo - Paulo Leminski.

Objeto do meu mais desesperado desejo, não seja aquilo por quem ardo e não vejo. Seja a estrela que me beija, oriente que me reja, azul, amor, beleza. Faça qualquer coisa más pelo amor de Deus  ou de nós dois Seja. Paulo Leminski.

Eu queria tanto ser um Poeta - Paulo Leminski.

Eu queria tanto  ser um poeta maldito. A massa sofrendo enquanto eu profundo medito. Eu queria tanto  ser um Poeta social. Rosto queimado pelo hálito das multidões. Em vez olha eu aqui pondo sal  nesta sopa rala que mal vai dar para dois. Paulo Leminski.

Litogravura - Paulo Leminski.

Litogravura Mão de estátua. Tempo, Coluna. Arco de Triunfo.  Mil duzentos e cinquenta.  Qualquer pedra na Europa  é suspeita de ser  mais do que aparenta. Felizes as pedras da minha terra  que nunca foram senão pedras.  Pedras, a lua esfria  e o sol esquenta. Paulo Leminski.

Asas e Azares - Paulo Leminski.

Asas e Azares Voar com asa ferida?  Abram alas quando eu falo.  Que mais foi que fiz na vida?  Fiz, pequeno, quando o tempo  estava todo do meu lado  e o que se chama passado,  passatempo, pesadelo,  só me existia nos livros.  Fiz, depois, dono de mim,  quando tive que escolher  entre um abismo, o começo,  e essa história sem fim.  Asa ferida, asa ferida,  meu espaço, meu herói.  A asa arde. Voar, isso não dói.  Paulo Leminski.

Rumo ao sumo - Paulo Leminski.

Rumo ao sumo  Disfarça, tem gente olhando. Uns, olham pro alto,  cometas, luas, galáxias.  Outros, olham de banda,  lunetas, luares, sintaxes.  De frente ou de lado,  sempre tem gente olhando,  olhando ou sendo olhado.  Outros olham para baixo,  procurando algum vestígio  do tempo que a gente acha,  em busca do espaço perdido.  Raros olham para dentro,  já que dentro não tem nada.  Apenas um peso imenso,  a alma, esse conto de fada.  Paulo Leminski.

O amor, esse sufoco - Paulo Leminski.

O Amor, esse sufoco, agora pouco era muito, agora, apenas um sopro. Ah, troço de louco, coração trocando rosas e socos. Paulo Leminski.

Amor, então também acaba? - Paulo Leminski.

Amor, então,  também, acaba? Não, que eu saiba. O que sei  é que se transforma numa matéria prima que a vida se encarrega de transformar em raiva. Ou em rima. Paulo Leminski.

Deslembro incertamente. Meu passado... Fernando Pessoa.

Deslembro incertamente. Meu passado Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui, Está confusamente deslembrado E logo em mim enclausurado flui.  Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.  Só há de meu o que me vê agora —  O campo verde, natural e mudo  Que um vento que não vejo vago aflora.  Sou tão parado em mim que nem o sinto.  Vejo, e onde [o] vale se ergue para a encosta  Vai meu olhar seguindo o meu instinto  Como quem olha a mesa que está posta.  Fernando Pessoa.

Verdadeiramente - Fernando Pessoa.

Verdadeiramente Nada em mim sinto. Há uma desolação Em quanto eu sinto.  Se vivo, parece que minto.  Não sei do coração.  Outrora, outrora  Fui feliz, embora  Só hoje saiba que o fui.  E este que fui e sou,  Margens, tudo passou  Porque flui.  Fernando Pessoa.

Há quase um ano não escrevo - Fernando Pessoa.

Há quase um ano não escrevo. Pesada, a meditação Torna-me alguém que não devo Interromper na atenção.  Tenho saudades de mim,  De quando, de alma alheada,  Eu era não ser assim,  E os versos vinham de nada.  Hoje penso quanto faço,  Escrevo sabendo o que digo...  Para quem desce do espaço  Este crepúsculo antigo?  Fernando Pessoa.

Às vezes medito - Fernando Pessoa.

Às vezes medito, Às vezes medito, e medito mais fundo, e ainda mais fundo E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície, E todo o universo é um mar de caras de olhos fechados para mim.  Cada coisa — um candeeiro de esquina, uma pedra, uma árvore,  E um olhar que me fita de um abismo incompreensível,  E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.  Ah, haver coisas!  Ah, haver seres!  Ah, haver maneira de haver seres  De haver haver,  De haver como haver haver,  De haver...  Ah, o existir o fenômeno abstracto — existir,  Haver consciência e realidade,  O que quer que isto seja...  Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?  Como posso eu dizer como é isto para se sentir?  Qual é alma de haver ser?  Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa  Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa  Porque é o pavoroso mistério de haver...  Álvaro de Campos - Heterônim

Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa.

Há doenças piores que as doenças, Há dores que não doem, nem na alma,  Mas que são dolorosas mais que as outras.  Há angústias sonhadas mais reais  Que as que a vida nos traz, há sensações  Sentidas só com o imaginá-las  Que são mais nossas do que a nossa vida.  Há tanta cousa que, sem existir,  Existe, existe demoradamente,  E demoradamente é nossa, é nós…  Por sobre o verdor turvo do amplo rio  Os circunflexos brancos das gaivotas…  Por sobre a alma o adejar inútil  Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.  Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.  Fernando Pessoa

Antes o vôo da Ave - Fernando Pessoa.

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar! Alberto Caeiro - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Eu adoro todas as coisas - Fernando Pessoa.

Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade. Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija. Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo Do que as que vi ou verei. Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa.

E as estrelas nos ares... - Fernando Pessoa.

E as estrelas nos ares só me lembram olhares Da linda que eu soube amar. Fernando pessoa.

Para saudar-te - Fernando Pessoa.

Para saudar-te Para saudar-te como se deve saudar-te Preciso tornar os meus versos corcel, Preciso tornar os meus versos comboio,  Preciso tornar os meus versos seta,  Preciso tornar os versos pressa,  Preciso tornar os versos nas coisas do mundo  Tudo cantavas, e em ti cantava tudo.  Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa.