O canteiro de mármore - Hermann Hesse.


A primeira estrela não tardaria a surgir em prenúncio de noite próxima. A conversa com Becker dera um pontapé em meu orgulho de pensador perspicaz. E como fazia uma noite muito bonita e já havia um vazio no meu amor-próprio, apossou-se repentinamente de mim uma paixão pela filha do marmorista. O que senti naquele instante fez-me concluir que não se podia brincar com paixões. Comi as últimas cerejas que ainda tinha comigo e quando as estrelas já tinham saído, quando na rua se ouviam os descantes, na voz de algumas moças sentimentais, larguei o chapéu e minha sabedoria no banco e encaminhei-me, apressado, para os campos escurecidos. Preso de uma incrível emoção, abrandei o passo e deixei correr as lágrimas livremente.
Mas, através da névoa que embaciava meus olhos, entrevia os espaços abertos que a noite estival preenchera de sombras quietas, as terras lavradas desdobravam-se até aos horizontes como uma sucessão de ondas suaves desfazendo-se na muralha transparente do céu; de um lado, o extenso bosque dormia, respirando tranquilamente, e, atrás de mim, a aldeia quase desaparecera, com suas luzes ralas e sons indistintos. Céu, campos lavrados, bosque, perfis de montanhas, aldeia, até os variados aromas dos prados e os audíveis trilos de grilos e cigarras, tudo se misturou em mim, tudo me envolveu suavemente e me penetrou como uma delicada melodia que despertasse em minha alma sensações simultaneamente alegres e tristes. Somente as estrelas permaneciam imóveis e refulgentes nas alturas.
Uma ansiedade a princípio tímida mas ardente, inundou-me o peito; não sabia ao certo se era um impulso para novas e desconhecidas alegrias e sofrimentos ou se era uma nostalgia, um recuo para os tempos de infância, um anseio de escutar novamente as vozes de meus falecidos pais, de encostar-me na cerca do jardim e escutar os latidos do cão já morto – e de chorar, chorar à vontade.

Hermann Hesse. In: O canteiro de mármore.

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