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Mostrando postagens de abril, 2015

Deslembro incertamente. Meu passado... Fernando Pessoa.

Deslembro incertamente. Meu passado Não sei quem o viveu. Se eu mesmo fui, Está confusamente deslembrado E logo em mim enclausurado flui.  Não sei quem fui nem sou. Ignoro tudo.  Só há de meu o que me vê agora —  O campo verde, natural e mudo  Que um vento que não vejo vago aflora.  Sou tão parado em mim que nem o sinto.  Vejo, e onde [o] vale se ergue para a encosta  Vai meu olhar seguindo o meu instinto  Como quem olha a mesa que está posta.  Fernando Pessoa.

Verdadeiramente - Fernando Pessoa.

Verdadeiramente Nada em mim sinto. Há uma desolação Em quanto eu sinto.  Se vivo, parece que minto.  Não sei do coração.  Outrora, outrora  Fui feliz, embora  Só hoje saiba que o fui.  E este que fui e sou,  Margens, tudo passou  Porque flui.  Fernando Pessoa.

Há quase um ano não escrevo - Fernando Pessoa.

Há quase um ano não escrevo. Pesada, a meditação Torna-me alguém que não devo Interromper na atenção.  Tenho saudades de mim,  De quando, de alma alheada,  Eu era não ser assim,  E os versos vinham de nada.  Hoje penso quanto faço,  Escrevo sabendo o que digo...  Para quem desce do espaço  Este crepúsculo antigo?  Fernando Pessoa.

Às vezes medito - Fernando Pessoa.

Às vezes medito, Às vezes medito, e medito mais fundo, e ainda mais fundo E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície, E todo o universo é um mar de caras de olhos fechados para mim.  Cada coisa — um candeeiro de esquina, uma pedra, uma árvore,  E um olhar que me fita de um abismo incompreensível,  E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.  Ah, haver coisas!  Ah, haver seres!  Ah, haver maneira de haver seres  De haver haver,  De haver como haver haver,  De haver...  Ah, o existir o fenômeno abstracto — existir,  Haver consciência e realidade,  O que quer que isto seja...  Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?  Como posso eu dizer como é isto para se sentir?  Qual é alma de haver ser?  Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa  Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa  Porque é o pavoroso mistério de haver...  Álvaro de Campos - Heterônim

Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa.

Há doenças piores que as doenças, Há dores que não doem, nem na alma,  Mas que são dolorosas mais que as outras.  Há angústias sonhadas mais reais  Que as que a vida nos traz, há sensações  Sentidas só com o imaginá-las  Que são mais nossas do que a nossa vida.  Há tanta cousa que, sem existir,  Existe, existe demoradamente,  E demoradamente é nossa, é nós…  Por sobre o verdor turvo do amplo rio  Os circunflexos brancos das gaivotas…  Por sobre a alma o adejar inútil  Do que não foi, nem pôde ser, e é tudo.  Dá-me mais vinho, porque a vida é nada.  Fernando Pessoa

Antes o vôo da Ave - Fernando Pessoa.

Antes o vôo da ave, que passa e não deixa rasto, Que a passagem do animal, que fica lembrada no chão. A ave passa e esquece, e assim deve ser. O animal, onde já não está e por isso de nada serve, Mostra que já esteve, o que não serve para nada. A recordação é uma traição à Natureza, Porque a Natureza de ontem não é Natureza. O que foi não é nada, e lembrar é não ver. Passa, ave, passa, e ensina-me a passar! Alberto Caeiro - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Eu adoro todas as coisas - Fernando Pessoa.

Eu adoro todas as coisas E o meu coração é um albergue aberto toda a noite. Tenho pela vida um interesse ávido Que busca compreendê-la sentindo-a muito. Amo tudo, animo tudo, empresto humanidade a tudo, Aos homens e às pedras, às almas e às máquinas, Para aumentar com isso a minha personalidade. Pertenço a tudo para pertencer cada vez mais a mim próprio E a minha ambição era trazer o universo ao colo Como uma criança a quem a ama beija. Eu amo todas as coisas, umas mais do que as outras, Não nenhuma mais do que outra, mas sempre mais as que estou vendo Do que as que vi ou verei. Nada para mim é tão belo como o movimento e as sensações. A vida é uma grande feira e tudo são barracas e saltimbancos. Penso nisto, enterneço-me mas não sossego nunca. Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa.

E as estrelas nos ares... - Fernando Pessoa.

E as estrelas nos ares só me lembram olhares Da linda que eu soube amar. Fernando pessoa.

Para saudar-te - Fernando Pessoa.

Para saudar-te Para saudar-te como se deve saudar-te Preciso tornar os meus versos corcel, Preciso tornar os meus versos comboio,  Preciso tornar os meus versos seta,  Preciso tornar os versos pressa,  Preciso tornar os versos nas coisas do mundo  Tudo cantavas, e em ti cantava tudo.  Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa.