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Mostrando postagens de janeiro, 2015

Para ser grande, sê inteiro - Fernando Pessoa.

Para ser grande, sê inteiro: Nada teu exagera ou exclui. Sê todo em cada coisa. Põe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lua toda Brilha, porque alta vive. Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Nem sempre sou igual - Fernando Pessoa.

Nem sempre sou igual no que digo e escrevo.  Mudo, mas não mudo muito.  A cor das flores não é a mesma ao sol  De que quando uma nuvem passa  Ou quando entra a noite  E as flores são cor da sombra. Mas quem olha bem vê que são as mesmas flores.  Por isso quando pareço não concordar comigo, Reparem bem para mim:  Se estava virado para a direita,  Voltei-me agora para a esquerda,  Mas sou sempre eu, assente sobre os mesmos pés  O mesmo sempre, graças ao céu e à terra  E aos meus olhos e ouvidos atentos  E à minha clara simplicidade de alma... Alberto Caeiro - Heterônimo de Fernando Pessoa.

O amor é uma companhia - Fernando Pessoa.

O amor é uma companhia Já não sei andar só pelos caminhos,  Porque já não posso andar só.  Um pensamento visível faz-me andar mais depressa  E ver menos, e ao mesmo tempo gostar bem de ir vendo tudo.  Mesmo a ausência dela é uma coisa que está comigo.  E eu gosto tanto dela que não sei como a desejar.  Se a não vejo, imagino-a e sou forte como as árvores altas.  Mas se a vejo tremo, não sei o que é feito do que sinto na ausência dela.  Todo eu sou qualquer força que me abandona.  Toda a realidade olha para mim como um girassol com a cara dela no meio.  Alberto Caeiro - Heterônimo de Fernando Pessoa. 

Aniversário - Fernando Pessoa.

Aniversário  No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, Eu era feliz e ninguém estava morto. Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,  E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.  No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,  Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,  De ser inteligente para entre a família,  E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.  Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.  Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.  Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,  O que fui de coração e parentesco.  O que fui de serões de meia-província,  O que fui de amarem-me e eu ser menino,  O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...  A que distância!...  (Nem o acho...)  O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!  O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,  Pondo grelado nas pare

A criança que ri na rua - Fernando Pessoa.

A criança que ri na rua, A música que vem no acaso, A tela absurda, a estátua nua, A bondade que não tem prazo —  Tudo isso excede este rigor  Que o raciocínio dá a tudo,  E tem qualquer coisa de amor,  Ainda que o amor seja mudo.  Fernando Pessoa.

Amigo Aprendiz.

Amigo Aprendiz. Quero ser o teu amigo.  Nem demais e nem de menos.  Nem tão longe e nem tão perto.  Na medida mais precisa que eu puder.  Mas amar-te sem medida e ficar na tua vida,  Da maneira mais discreta que eu souber.  Sem tirar-te a liberdade, sem jamais te sufocar.  Sem forçar tua vontade.  Sem falar, quando for hora de calar.  E sem calar, quando for hora de falar.  Nem ausente, nem presente por demais.  Simplesmente, calmamente, ser-te paz.  É bonito ser amigo, mas confesso: é tão difícil aprender!  E por isso eu te suplico paciência.  Vou encher este teu rosto de lembranças,  Dá-me tempo de acertar nossas distâncias.  Poema atribuído erroneamente a Fernando Pessoa.  Desconheço a autoria.

Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa.

Não sei quantas almas tenho. Cada momento mudei. Continuamente me estranho. Nunca me vi nem achei.  De tanto ser, só tenho alma.  Quem tem alma não tem calma.  Quem vê é só o que vê,  Quem sente não é quem é,  Atento ao que sou e vejo,  Torno-me eles e não eu.  Cada meu sonho ou desejo  É do que nasce e não meu.  Sou minha própria paisagem,  Assisto à minha passagem,  Diverso, móbil e só,  Não sei sentir-me onde estou.  Por isso, alheio, vou lendo  Como páginas, meu ser  O que segue não prevendo,  O que passou a esquecer.  Noto à margem do que li  O que julguei que senti.  Releio e digo: «Fui eu?»  Deus sabe, porque o escreveu.  Fernando Pessoa.

É fácil trocar as palavras...

É fácil trocar as palavras, Difícil é interpretar os silêncios! É fácil caminhar lado a lado, Difícil é saber como se encontrar!  É fácil beijar o rosto,  Difícil é chegar ao coração!  É fácil apertar as mãos,  Difícil é reter o calor!  É fácil sentir o amor,  Difícil é conter sua torrente!  Como é por dentro outra pessoa?  Quem é que o saberá sonhar?  A alma de outrem é outro universo  Com que não há comunicação possível,  Com que não há verdadeiro entendimento.  Nada sabemos da alma  Senão da nossa;  As dos outros são olhares,  São gestos, são palavras,  Com a suposição  De qualquer semelhança no fundo.  Poema atribuído erroneamente a Fernando Pessoa.  Desconheço a autoria.

Depus a máscara - Fernando Pessoa.

Depus a máscara e vi-me ao espelho. Era a criança de há quantos anos.  Não tinha mudado nada...  É essa a vantagem de saber tirar a máscara.  É-se sempre criança,  O passado que foi  A criança.  Depus a máscara e tornei a pô-la.  Assim é melhor,  Assim sem a máscara.  E volto a personalidade como a um términus de linha. Álvaro de Campos - Heterônimo de Fernando Pessoa.  

Não sei quem sou, que alma tenho - Fernando Pessoa.

Não sei quem sou, que alma tenho Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros). Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me aponta traições de alma a um carácter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenho. Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas. Como o panteísta se sente árvore e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada, por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço. Fernando Pessoa.

Silêncio. Deixa-me pensar - Fernando Pessoa.

Silêncio. Deixa-me pensar  Há um sonho em mim que me prendeu,  Um que começa a começar  Aquém da terra e além do céu.  Deixa-me ser nem teu nem meu.  Deixa-me só não sossegar.  A maravilha da distância  É feita de mar largo e azul.  Há sobre o perto a irreal fragrância  De um campo aberto sobre o sul.  Meu coração actual é êxul,  Meu ser cativo é livre de ânsia.  Não sei quem foi que ali me disse  Palavras que não sei contar.  Foram de anônima ledice.  Silêncio. Deixa-me pensar.  Não tenho amor para te dar.  Minha alma jovem tem velhice.  Fernando Pessoa. 

Conselho - Fernando Pessoa.

Conselho  Cerca de grandes muros quem te sonhas.  Depois, onde é visível o jardim  Através do portão de grade dada,  Põe quantas flores são as mais risonhas,  Para que te conheçam só assim.  Onde ninguém o vir não ponhas nada.  Faze canteiros como os que outros têm,  Onde os olhares possam entrever  O teu jardim como lho vais mostrar.  Mas onde és teu, e nunca o vê ninguém  Deixa as flores que vêm do chão crescer  E deixa as ervas naturais medrar.  Faze de ti um duplo ser guardado;  E que ninguém, que veja e fite, possa  Saber mais que um jardim de quem tu és —  Um jardim ostensivo e reservado,  Por trás do qual a flor nativa roça  A erva tão pobre que nem tu a vês...  Fernando Pessoa.

Mar Português - Fernando Pessoa.

Mar Português Ó mar salgado, quanto do teu sal  São lágrimas de Portugal!  Por te cruzarmos, quantas mães choraram,  Quantos filhos em vão rezaram!  Quantas noivas ficaram por casar  Para que fosses nosso, ó mar!  Valeu a pena? Tudo vale a pena  Se a alma não é pequena.  Quem quer passar além do Bojador  Tem que passar além da dor.  Deus ao mar o perigo e o abismo deu,  Mas nele é que espelhou o céu.  Fernando Pessoa.

A vida é para nós o que concebemos nela - Fernando Pessoa.

A vida é para nós o que concebemos nela. Para o rústico cujo campo próprio lhe é tudo, esse campo é um império. Para o César cujo império lhe ainda é pouco, esse império é um campo. O pobre possui um império; o grande possui um campo. Na verdade, não possuímos mais que as nossas próprias sensações; nelas, pois, que não no que elas vêem, temos que fundamentar a realidade da nossa vida. Bernardo Soares - Heterônimo de Fernando Pessoa . Livro do Desassossego.

Prece - Fernando Pessoa.

Prece  Senhor, que és o céu e a terra, que és a vida e a morte! O sol és tu e a lua és tu e o vento és tu. Tu és os nossos corpos e as nossas almas e o nosso amor és tu também. Onde nada está tu habitas e onde tudo está (o teu templo) eis o teu corpo. Dá-me alma para te servir e alma para te amar. Dá-me vista para te ver sempre no céu e na terra, ouvidos para te ouvir no vento e no mar, e mãos para trabalhar em teu nome. Torna-me puro como a água e alto como o céu. Que não haja lama nas estradas dos meus pensamentos nem folhas mortas nas lagoas dos meus propósitos. Faze com que eu saiba amar os outros como irmãos e servir-te como a um pai. Minha vida seja digna da tua presença. Meu corpo seja digno da terra, tua cama. Minha alma possa aparecer diante de ti como um filho que volta ao lar. Torna-me grande como o Sol, para que eu te possa adorar em mim; e torna-me puro como a lua, para que eu te possa rezar em mim; e torna-me claro como o dia para que eu te possa ver sempre em mim e