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Mostrando postagens de agosto, 2015

Prefácio - Manoel de Barros.

Prefácio Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) — sem nome.  Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.  Insetos errados de cor caíam no mar.  A voz se estendeu na direção da boca.  Caranguejos apertavam mangues.  Vendo que havia na terra  Dependimentos demais  E tarefas muitas —  Os homens começaram a roer unhas.  Ficou certo pois não  Que as moscas iriam iluminar  O silêncio das coisas anônimas.  Porém, vendo o Homem  Que as moscas não davam conta de iluminar o  Silêncio das coisas anônimas —  Passaram essa tarefa para os poetas.  Manoel de Barros.

Tratado geral das grandezas do ínfimo - Manoel de Barros.

Tratado geral das grandezas do ínfimo A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades.  Não tenho conexões com a realidade.  Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.  Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).  Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.  Fiquei emocionado.  Sou fraco para elogios.  Manoel de Barros.

A Borra - Manoel de Barros.

A Borra Prefiro as palavras obscuras que moram nos fundos de uma cozinha - tipo borra, latas, cisco Do que as palavras que moram nos sodalícios -  tipo excelência, conspícuo, majestade.  Também meus alter egos são todos borra,  ciscos, pobres-diabos  Que poderiam morar nos fundos de uma cozinha  - tipo Bola Sete, Mário Pega Sapo, Maria Pelego  Preto etc.  Todos bêbedos ou bicós.  E todos condizentes com andrajos.  Um dia alguém me sugeriu que adotasse um  alter ego respeitável - tipo um príncipe, um  almirante, um senador.  Eu perguntei:  Mas quem ficará com meus abismos se os  pobres diabos não ficarem?  Manoel de Barros.

Os deslimites da palavra - Manoel de Barros.

Os deslimites da palavra Ando muito completo de vazios. Meu órgão de morrer me predomina. Estou sem eternidades.  Não posso mais saber quando amanheço ontem.  Está rengo de mim o amanhecer.  Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.  Atrás do ocaso fervem os insetos.  Enfiei o que pude dentro de um grilo o meu  destino.  Essas coisas me mudam para cisco.  A minha independência tem algemas.  Manoel de Barros.

O livro sobre nada - Manoel de Barros.

O livro sobre nada É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez. Tudo que não invento é falso. Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira. Tem mais presença em mim o que me falta. Melhor jeito que achei pra me conhecer foi fazendo o contrário. Sou muito preparado de conflitos. Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou. O meu amanhecer vai ser de noite. Melhor que nomear é aludir. Verso não precisa dar noção. O que sustenta a encantação de um verso (além do ritmo) é o ilogismo. Meu avesso é mais visível do que um poste. Sábio é o que adivinha. Para ter mais certezas tenho que me saber de imperfeições. A inércia é meu ato principal. Não saio de dentro de mim nem pra pescar. Sabedoria pode ser que seja estar uma árvore. Estilo é um modelo anormal de expressão: é estigma. Peixe não tem honras nem horizontes. Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas quando não desejo contar n

Retrato do artista quando coisa - Manoel de Barros.

Retrato do artista quando coisa A maior riqueza  do homem  é sua incompletude.  Nesse ponto  sou abastado.  Palavras que me aceitam  como sou  — eu não aceito.  Não aguento ser apenas  um sujeito que abre  portas, que puxa  válvulas, que olha o  relógio, que compra pão  às 6 da tarde, que vai  lá fora, que aponta lápis,  que vê a rua etc. etc.  Perdoai. Mas eu  preciso ser Outros.  Eu penso  renovar o homem  usando borboletas.  Manoel de Barros.

Há quem receite a palavra ao ponto de osso - Manoel de Barros.

Há quem receite a palavra ao ponto de osso, oco;  ao ponto de ninguém e de nuvem.  Sou mais a palavra com febre, decaída, fodida, na  sarjeta.  Sou mais a palavra ao ponto de entulho.  Amo arrastar algumas no caco de vidro, envergá-las  pro chão, corrompê-las  até que padeçam de mim e me sujem de branco.  Sonho exercer com elas o ofício de criado:  usá-las como quem usa brincos.  Manoel de Barros.

O menino que carregava água na peneira - Manoel de Barros.

O menino que carregava água na peneira Tenho um livro sobre águas e meninos. Gostei mais de um menino que carregava água na peneira.  A mãe disse que carregar água na peneira  era o mesmo que roubar um vento e  sair correndo com ele para mostrar aos irmãos.  A mãe disse que era o mesmo  que catar espinhos na água.  O mesmo que criar peixes no bolso.  O menino era ligado em despropósitos.  Quis montar os alicerces  de uma casa sobre orvalhos.  A mãe reparou que o menino  gostava mais do vazio, do que do cheio.  Falava que vazios são maiores e até infinitos.  Com o tempo aquele menino  que era cismado e esquisito,  porque gostava de carregar água na peneira.  Com o tempo descobriu que  escrever seria o mesmo  que carregar água na peneira.  No escrever o menino viu  que era capaz de ser noviça,  monge ou mendigo ao mesmo tempo.  O menino aprendeu a usar as palavras.  Viu que podia fazer peraltagens com as palavras. 

Auto-Retrato - Manoel de Barros.

Auto-Retrato Ao nascer eu não estava acordado, de forma que não vi a hora. Isso faz tempo.  Foi na beira de um rio.  Depois eu já morri 14 vezes.  Só falta a última.  Escrevi 14 livros.  E deles estou livrado.  São todos repetições do primeiro.  Posso fingir de outro, mas não posso fugir de mim.  Já plantei dezoito árvores, mas pode que só quatro.  Em pensamento e palavras namorei noventa moças,  mas pode que nove.  Produzi desobjectos, 35, mas pode que onze.  Cito os mais bolinados: um alicate cremoso, um  abridor de amanhecer, uma fivela de prender silêncios,  um prego que farfalha, um parafuso de veludo, etc. etc.  Tenho uma confissão: noventa por cento do que  escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.  Quero morrer no barranco de um rio: sem moscas  na boca descampada.  Manoel de Barros.

O apanhador de desperdícios - Manoel de Barros.

O apanhador de desperdícios Uso a palavra para compor meus silêncios. Não gosto das palavras  fatigadas de informar.  Dou mais respeito  às que vivem de barriga no chão  tipo água pedra sapo.  Entendo bem o sotaque das águas  Dou respeito às coisas desimportantes  e aos seres desimportantes.  Prezo insetos mais que aviões.  Prezo a velocidade  das tartarugas mais que a dos mísseis.  Tenho em mim um atraso de nascença.  Eu fui aparelhado  para gostar de passarinhos.  Tenho abundância de ser feliz por isso.  Meu quintal é maior do que o mundo. Sou um apanhador de desperdícios:  Amo os restos  como as boas moscas.  Queria que a minha voz tivesse um formato  de canto.  Porque eu não sou da informática:  eu sou da invencionática.  Só uso a palavra para compor meus silêncios. Manoel de Barros.