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Mostrando postagens de fevereiro, 2015

A Criança que fui chora na estrada - Fernando Pessoa

A Criança que fui chora na estrada, Deixei-a ali quando vim ser quem sou; Mas hoje, vendo que o que sou é nada, Quero ir buscar quem fui onde ficou.  Ah, como hei-de encontrá-lo? Quem errou  A vinda tem a regressão errada.  Já não sei de onde vim nem onde estou.  De o não saber, minha alma está parada.  Se ao menos atingir neste lugar  Um alto monte, de onde possa enfim  O que esqueci, olhando-o, relembrar,  Na ausência, ao menos, saberei de mim,  E ao ver-me tal qual fui ao longe, achar  Em mim um pouco de quando era assim.  Fernando Pessoa. 

A espantosa realidade das coisas - Fernando Pessoa.

A espantosa realidade das coisas É a minha descoberta de todos os dias. Cada coisa é o que é, E é difícil explicar a alguém quanto isso me alegra, E quanto isso me basta. Basta existir para se ser completo. Tenho escrito bastantes poemas. Hei de escrever muitos mais, naturalmente. Cada poema meu diz isto, E todos os meus poemas são diferentes, Porque cada cousa que há é uma maneira de dizer isto. Às vezes ponho-me a olhar para uma pedra. Não me ponho a pensar se ela sente. Não me perco a chamar-lhe minha irmã. Mas gosto dela por ela ser uma pedra, Gosto dela porque ela não sente nada. Gosto dela porque ela não tem parentesco nenhum comigo. Outras vezes ouço passar o vento, E acho que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido. Eu não sei o que é que os outros pensarão lendo isto; Mas acho que isto deve estar bem porque o penso sem esforço, Nem ideia de outras pessoas a ouvir-me pensar; Porque o penso sem pensamentos Porque o digo como as minhas palavras o dizem. Uma

Trechos do Poema Hora absurda - Fernando Pessoa.

Trechos do Poema Hora absurda O teu silencio é uma nau com todas as velas pandas... Brandas, as brisas brincam nas flamulas, teu sorriso... E o teu sorriso no teu silencio é as escadas e as andas Com que me finjo mais alto e ao pé de qualquer paraíso... Meu coração é uma ânfora que cai e que se parte... O teu silencio recolhe-o e guarda-o, partido, a um canto... Minha idéia de ti é um cadáver que o mar traz a praia... e entanto Tu és a tela irreal em que erro em cor a minha arte... Todas as minhas horas são feitas de jaspe negro, Minhas ânsias todas trabalhadas num mármore que não há. Não é alegria nem dor esta dor com que me alegro, E a minha bondade inversa não é nem boa nem má... Porque me aflijo e me enfermo?... Deitam se nuas ao luar Todas as ninfas... Veio o sol e já tinham partido... O teu silencio que me embala é a idéia de naufragar, E a idéia de tua voz soar a lira dum Apolo Fingido... Já não há caudas de pavões todas olhos no jardim de outrora... Minha alma é uma lampad

Adiamento - Fernando Pessoa.

Adiamento Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã... Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, E assim será possível; mas hoje não... Não, hoje nada; hoje não posso. A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, O sono da minha vida real, intercalado, O cansaço antecipado e infinito, Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico... Esta espécie de alma... Só depois de amanhã... Hoje quero preparar-me, Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte... Ele é que é decisivo. Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos... Amanhã é o dia dos planos. Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã... Tenho vontade de chorar, Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro... Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. Só depois de amanhã... Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana. Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...

Gato que brincas na rua - Fernando Pessoa.

Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama.  Bom servo das leis fatais  Que regem pedras e gentes,  Que tens instintos gerais  E sentes só o que sentes.  És feliz porque és assim,  Todo o nada que és é teu.  Eu vejo-me e estou sem mim,  Conheço-me e não sou eu.  Fernando Pessoa.

Autopsicografia - Fernando Pessoa.

Autopsicografia O poeta é um fingidor.  Finge tão completamente  Que chega a fingir que é dor  A dor que deveras sente.  E os que leem o que escreve,  Na dor lida sentem bem,  Não as duas que ele teve,  Mas só a que eles não têm.  E assim nas calhas de roda  Gira, a entreter a razão,  Esse comboio de corda  Que se chama coração.  Fernando Pessoa.

Tenho tanto sentimento - Fernando Pessoa.

Tenho tanto sentimento Que é frequente persuadir-me  De que sou sentimental,  Mas reconheço, ao medir-me,  Que tudo isso é pensamento,  Que não senti afinal.  Temos, todos que vivemos,  Uma vida que é vivida  E outra vida que é pensada,  E a única vida que temos  É essa que é dividida  Entre a verdadeira e a errada.  Qual porém é a verdadeira  E qual errada, ninguém  Nos saberá explicar;  E vivemos de maneira  Que a vida que a gente tem  É a que tem que pensar.  Fernando Pessoa.

Vivem em nós inúmeros - Fernando Pessoa.

Vivem em nós inúmeros;  Se penso ou sinto, ignoro  Quem é que pensa ou sente.  Sou somente o lugar  Onde se sente ou pensa.  Tenho mais almas que uma.  Há mais eus do que eu mesmo.  Existo todavia  Indiferente a todos.  Faço-os calar: eu falo.  Os impulsos cruzados  Do que sinto ou não sinto  Disputam em quem sou.  Ignoro-os. Nada ditam  A quem me sei: eu ´screvo.  Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Contemplo o lago mudo - Fernando Pessoa.

Contemplo o lago mudo que a brisa estremece. Não sei se penso em tudo ou se o tudo me esquece.  O lago nada me diz,  não sinto a brisa mexe-lo  Não sei se sou feliz  nem se desejo se-lo.  Trêmulos rincos risonhos  na água adormecida.  porque fiz eu dos sonhos  a minha única vida?  Fernando Pessoa.

Quero ignorado, e calmo - Fernando Pessoa.

Quero ignorado, e calmo  Por ignorado, e próprio  Por calmo, encher meus dias  De não querer mais deles.  Aos que a riqueza toca  O ouro irrita a pele.  Aos que a fama bafeja  Embacia-se a vida.  Aos que a felicidade  É sol, virá a noite.  Mas ao que nada espera  Tudo que vem é grato. Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Colhe o dia porque és ele - Fernando Pessoa.

Uns, com os olhos postos no passado, Vêem o que não vêem: outros, fitos  Os mesmos olhos no futuro, vêem  O que não pode ver-se. Por que tão longe ir pôr o que está perto  A segurança nossa? Este é o dia,  Esta é a hora, este o momento, isto  É quem somos, e é tudo. Perene flui a interminável hora  Que nos confessa nulos. No mesmo hausto  Em que vivemos, morreremos. Colhe  O dia, porque és ele. Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Nem tudo é dias de sol - Fernando Pessoa.

Nem tudo é dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se  Por isso tomo a infelicidade com a felicidade  Naturalmente, como quem não estranha  Que haja montanhas e planícies  E quando haja rochedos e erva...  O que é preciso é ser-se natural e calmo  Na felicidade ou na infelicidade,  Sentir como quem olha,  Pensar como quem anda,  E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,  E que o poente é belo e é bela a noite que fica...  Assim é e assim seja...  Fernando Pessoa.

Amo o que vejo porque deixarei - Fernando Pessoa.

Amo o que vejo porque deixarei  Qualquer dia de o ver.  Amo-o também porque é.  No plácido intervalo em que me sinto,  Do amar, mais que ser,  Amo o haver tudo e a mim.  Melhor me não dariam, se voltassem,  Os primitivos deuses,  Que também, nada sabem.  Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.

Tão cedo passa tudo quanto passa - Fernando Pessoa.

Tão cedo passa tudo quanto passa!  Morre tão jovem ante os deuses quanto  Morre! Tudo é tão pouco!  Nada se sabe, tudo se imagina. Circunda-te de rosas, ama, bebe  E cala. O mais é nada.  Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa. 

Segue o teu destino - Fernando Pessoa.

Segue o teu destino, Rega as tuas plantas,  Ama as tuas rosas.  O resto é a sombra  De árvores alheias.  A realidade Sempre é mais ou menos  Do que nós queremos.  Só nós somos sempre  Iguais a nós-próprios.  Suave é viver só. Grande e nobre é sempre  Viver simplesmente.  Deixa a dor nas aras  Como ex-voto aos deuses.  Vê de longe a vida. Nunca a interrogues.  Ela nada pode  Dizer-te. A resposta  Está além dos deuses.  Mas serenamente Imita o Olimpo  No teu coração.  Os deuses são deuses  Porque não se pensam. Ricardo Reis - Heterônimo de Fernando Pessoa.